O concurso internacional:

Projecto para o monumento commemorativo de
RAMOS DE AZEVEDO

"O projecto de monumento que tenho a honra de submetter ao juizo da commissão julgadora constituida para o fim de escolher a "maquette" que servirá de base essencial para a construção do monumento commemorativo do grande architecto brasileiro que foi RAMOS DE AZEVEDO, consta em linhas geraes, do seguinte: Sobre uma base rectangular, de 18 metros e 50 cents de comprimento, 13 de largura de comprimento, 17 de largura e 5,60 de altura, erguem-se duas theorias de columnas, em estylo dorico, sustentando, cada uma, uma architrave, em que, por sua vez, se apoia a grande massa symbolica, constituida por um cavallo alado, montado, que é o topo do monumento."

Com estas palavras Galileo Emendabili, de forma sumária apresentou seu projeto à Comissão Julgadora do Concurso Internacional, concorrendo com os projetos: dos cariocas Andrade/Cuchet/Memória; Guido Varo; Ottone Zorlini; Roque De Mingo; Matemo Garibaldi; Prati/Croce; Larocca; Cipicchia; Busacca; Cucè; Nozières/Paes Leme; Zago; Del Debbio; Malozzi; Ferri (escultor) e Giglio (arquiteto); Cozzo e De Giusto.

Com o falecimento do arquiteto de São Paulo da era moderna, Ramos de Azevedo, em 1928 - dentre as suas obras mais marcantes destacou-se o Theatro Municipal - instituiu-se logo o Comitê Pro Monumento a Ramos de Azevedo, integrado por: Luis Scattolin (presidente), Sebastião Sparapani (tesoureiro), Julio Sorelli (secretário), Pedro Susanna e Antonio Ambroggi (secretários).

De imediato, foi levantada a expressiva quantia de 138:500$000. Aos 25 de janeiro de 1934, ocasião da inauguração do monumento, a cifra alcançou a soma de 843:216$440. O montante das doações levantado ao final foi de 1.004:920$190 (notação de época), o que significava uma verdadeira fortuna.
A Comissão Julgadora integrada foi: pelo prefeito Pires do Rio; pelo vereador Gofredo da Silva Teles; por Ricardo Severo – diretor interino do Liceu de Artes e Ofícios; pelo professor Corrêa Lima – diretor da Escola Nacional de Belas Artes; pelo professor Luís Anhaia Mello – vice-diretor da Escola Politécnica; por Ferruccio Rubiani - presidente da Sociedade “Muse Italiche”, e; por Arnaldo Mecozzi – pintor e decorador.

Dentre os projetos classificados, a Comissão Julgadora atribuiu 6 votos sobre 7 ao projeto de Emendabili (1929).

Documentos escritos sobre a construção do monumento são desconhecidos. Apenas fotos atestam a sua montagem. Pouco se sabe sobre as diversas fases de sua construção. Foi construído todo no Liceu de Artes e Ofícios. A fundição das esculturas em bronze ficou a sob a responsabilidade de Giuseppe Rebellato, o melhor e mais capacitado fundidor artístico de seu tempo no Brasil, sendo finalizado em dezembro de 1933, permanecendo envelopado até a data da Fundação de São Paulo, quando inaugurado aos 25 de janeiro de 1934.

O homenageado:

Ramos de Azevedo é figura emblemática no cenário arquitetônico e urbanístico de São Paulo, sendo sua presença na construção de uma metrópole moderna, verdadeiro paradigma. Jovem, em Gante, na Bélgica, iniciou seus estudos em Engenharia Civil. Contudo, o diretor do curso de Arquitetura surpreendeu-se com a qualidade de seus desenhos e trabalhos, orientando-o para que trocasse de carreira, passando ele a estudar Arquitetura.
No retorno ao Brasil, Ramos de Azevedo estabeleceu-se em Campinas, onde executou seus primeiros projetos, inclusive a conclusão da construção da catedral da cidade, o primeiro de seus grandes trabalhos.

Quando se transferiu para a capital de São Paulo, saiu das suas pranchas o Teatro Municipal de São Paulo, obra do Escritório Técnico Ramos de Azevedo. No final do século XIX, projetou as residências de alguns membros da elite paulista passando, em pouco tempo, a se afirmar como principal influenciador da arquitetura local, o que lhe valeu durante algumas décadas, a ser ele o autor dos principais projetos públicos da cidade: o Mercado Municipal, o Liceu de Artes e Ofícios (hoje Pinacoteca de São Paulo), o Tribunal de Justiça (Escritório Severo-Villares), dentre tantos outros.

Ramos de Azevedo participou também da fundação da Escola Politécnica, estabelecendo paralelo ao modelo similar que experimentou na Europa, passando a ser educador. Sua ligação com o ensino também aconteceu quando se tornou diretor do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, onde promoveu uma reforma de ensino, empregando como aprendizes órfãos e menores carentes, o que tornaria a escola autossuficiente, assim reconhecida por seu primor estético e executivo em vários setores de produção artística e artesã em todo o país.

Para Ramos de Azevedo, a obra de Arquitetura, para ser bela, antes tudo, deveria ser perfeita. E esta perfeição se atingiria com a conjugação da Arquitetura, da Engenharia, da Pintura e da Escultura.

Vitrais, mosaicos, murais, esculturas, elementos decorativos, plasticidade harmônica no desenho da construção, para Ramos de Azevedo, deveriam integrar-se ao rigor da técnica construtiva e à funcionalidade do prédio por ele projetado, fosse público ou particular.

Perfeição, portanto, entendida como conectividade entre várias disciplinas, inclusive as artesãs: – móveis – portas – batentes – luminárias – lustres - serralheria – louças etc; integradas de forma estética entendida no seu sentido essencialmente clássico, mas também substancialmente eclético.

A importância desta forma de ver, entender e viver a Arquitetura rompeu com paradigmas, usos e costumes tradicionais, profundamente enraizados na cultura paulista, bem como brasileira como um todo, herança marcada dos períodos colonial e imperial. Assim, tal forma de Arquitetura tornara-se incompatível com a metrópole que já naqueles tempos de virada do Século XIX para o XX, se desenvolvia e crescia num ritmo exponencial sem paralelos simétricos no mundo de então.

Ao longo ir, a obra arquitetônica azevediana conseguira romper com a tradição e dar nova feição a São Paulo, capital e interior, coetânea aos novos tempos, de progresso acelerado, industrialização, pujança e riqueza. Neste sentido, não foi somente obra arquitetônica encerrada em si mesma. Antes foi marco divisório, histórico e ideológico, prenuncio da colocação de São Paulo dentre o concerto das assim chamadas “capitais mundiais”, e o seu Estado, como um dos mais prósperos dentre as nações.

Assim, devido à importância de sua obra para São Paulo, com a sua morte (1928), cogitou-se logo erigir em frente ao prédio do Liceu de Artes e Ofícios, na Avenida Tiradentes, o Monumento a Ramos de Azevedo.

Características do monumento:

Annatereza Fabris, em seu livro “Monumento a Ramos de Azevedo – Do Concurso ao Exílio” (- Campinas, SP : Mercado das Letras, São Paulo : Fapesp, 1997 – p. 43), citando a de Pollilo, apura deste que: “... o monumento de Emendabili é sui generis na paisagem paulistana, possui um valor plástico e conceitual puro, bem diferente daqueles monstrengos e de umas poucas estátuas de valor, que não vão além de uma proposta decorativa”.

O escritor modernista Menotti Del Picchia também encontra eco na citada obra de Fabris (p. 43/44), que conceitua essencialmente esta obra emendabiliana como: “... uma linha maciça e global, onde os grandes e solenes planos dos blocos arquitetônicos encontram seu normal desenvolvimento no episódio escultórico. O monumento tem unidade. Isto é tudo. Dessa unidade, que é repousante e imponente, decorre a impressiva majestade da combinação de pedra e do metal. Dir-se-á que a concepção do imaginário estatuário é talvez eloquente, mas a finalidade monumental é a mesma: ser uma frase de bronze e de granito eternizando um feito ou uma individualidade”.

Menotti percebera algo que marcaria a obra emendabiliana por toda a sua vida artística: - A subordinação da Escultura à Arquitetura. Como por Del Picchia escrito, é nos planos da arquitetura emendabiliana que a sua escultura se insere como episódio.

E nisto, tal como Azevedo, Emendabili inovou ao homenageá-lo, rompendo com os paradigmas dominantes de então.

Veja-se o capítulo sobre o Monumento a Luís Pereira Barreto (1929), de Galileo Emendabili, erigido na Praça Marechal Deodoro, no Centro da Capital de São Paulo. Este monumento, desde seu edital, exigia o formalismo rigoroso, tanto na concepção da estatuária, fixadamente acadêmica, como na sua elaboração arquitetônica. O conceito dominante então era subordinar a Arquitetura, entendida esta apenas como base de verticalização do monumento, à Escultura. Mero pedestal, embora refinadamente adornado por Emendabili. Fato é que, como comum, Luís Pereira Barreto aparece no cume do monumento, em posição máxima, típica da monumentalidade que destaca o homenageado, elevando-o.

Não é o que ocorre no Monumento a Ramos de Azevedo (1934). Nesta obra, esta posição se inverte abruptamente.

Emendabili concebe a obra com a figuração de Ramos de Azevedo na parte baixa do monumento, na base, pouco acima do nível das demais figurações que a entornam, modeladas as figuras basilares em grupos distintos, em dissonância estética uns em relação aos outros, compondo ecleticamente o conjunto escultórico da obra.

Ramos de Azevedo aparece sentado na base, à frente do monumento, perto de quem o observa a partir da praça, com plantas de obras às mãos, como se estivesse observando os seus projetos, o apanhado geral de sua obra. O modelado de sua imagem é deveras acadêmico.

Contudo, à diferença do que ocorrera em relação ao Monumento a Luís Pereira Barreto, que isto exigira no edital, o academicismo emprestado por Emendabili ao Ramos de Azevedo, por ele modelado, é proposital.

De Pollilo, na citada obra de Fabris (p. 29), define Ramos de Azevedo como sendo: “... uma criatura que sentia o mais santo dos horrores instintivos em relação aos surtos juvenis e deliciosos desses últimos decênios (...)”, referindo-se aos últimos dez anos do Século XIX e primeiros vinte anos do Século XX.

Portanto, o classicismo da obra azevediana gravado ficou na sua imagem, porque assim devia ser. Esta tipologia formal escultórica é algo que se amolda mais à alma do homenageado, conferindo a espiritualidade intrínseca de sua pessoa, mais que propriamente à forma de figurá-lo. O artista foi fiel à alma e ao operado eminentemente neoclássico de Ramos de Azevedo.

Mas é só. A partir deste ponto basilar, à frente do monumento, a pessoa que o vislumbra, circundando sua base antes de olhar para cima, percebe instintivamente este gritante destoar do modelado entre Ramos de Azevedo e o modelado das “Musas Inspiradoras”: “Engenharia; Arquitetura; Escultura e Pintura”, dispostas nas laterais da base, ao longo de seu eixo maior; além do “Grupo dos Trabalhadores”, também denominado “Grupo de Construtores”, situado na base, junto à parte posterior da obra.

O todo esculpido na base faz conjunto, dá suporte, e referência simbólica à obra azevediana, eminentemente clássica, assim exposta e figurada no monumento, colocando estes elementos ao alcance corpóreo e imediatamente visual de quem o observa.

Dispostos estão, portanto, os 6 (seis) elementos escultóricos no mesmo nível planar da base do monumento. Emendabili equiparou-os, no sentido que emprestam ao Mestre Arquiteto o mesmo valor quanto à inspiração e concretude que maximizaram a sua vida, a sua obra, o seu legado, em termos de equivalência.

As Musas:

As “Musas”: “Engenharia – Pintura – Escultura – Arquitetura”; que informaram e inspiraram a Ramos de Azevedo, se encontram dispostas em pares, nas duas laterais da base de lado maior do monumento. Nuas, impregnadas estão de exalada sensualidade e de intenso apelo feminino, a dar parâmetro de fecundidade.

Evidente a delicadeza dos traços e suavidade dos gestos – o que remete à estatuária de Canova. Seus corpos perfeitos se apresentam exuberantes, mas com gestualidade sutil, refinada, invulgar. A textura do bronze remete à suavidade e textura da pele feminina, à sua maciez e à perfeição das formas.

Nas faces e nos olhares percebe-se nelas sentimento de destacada superioridade e de êxtase recatado, contido, em modelado emocional típico da estatuária emendabiliana. Não raro, quem as olha não se contenta. Necessário se faz tocá-las. Emendabili emprestou ao bronze textura de pele, visível a quem se aproxima das peças.

O modelado das “Musas” é neoclássico – mas não acadêmico. O neoclassicismo emendabiliano, nestas esculturas, de certa forma, não acompanha de imediato o que Tadeu Chiarelli, na citada obra organizada por Annatereza Fabris, define como retorno à Ordem Internacional da Escultura do final do Século XIX para o Século XX, a partir da teorética de Hildebrand, adotada sim por Emendabili, indiscutivelmente. Mas isto só ocorre na escultura do terço superior, ao alto do monumento.

Segundo Tadeu Chiarelli, na citada obra (p. 66), esta linha na Escultura, foi adotada, além de Galileo Emendabili (que a partir dela encontrou sua poética e seu próprio traço inconfundível), também: “- com as devidas adaptações -, por Maillol, Mestrovic, Wild, Barlach, Wotruba, no plano internacional e, no cenário brasileiro, por Victor Brecheret, Bruno Giorgi, Ernesto De Fiori e outros”.

Contudo, esta corrente, cujo tronco é Hildebrand, no monumento, encontra alta ressonância no vértice com o conjunto “O Progresso”. E nisto tem total razão Tadeu Chiarelli. Mas - guardadas as distâncias entre o lúcido, esclarecido, sempre balizado entendimento chiarelliano - isto não se aplica às “Musas”, na porção basilar da obra.

Às “Musas” do Monumento a Ramos de Azevedo, aplica-se mais a corrente filosófica e estética neoclássica, que obteve larga difusão na Europa e nas Américas, reagindo contra a frivolidade e ao excessivo decorativismo do Rococó, seguindo princípios de ordem, clareza, austeridade, racionalidade e equilíbrio. Na verdade, as “Musas” não deixam de ser um retorno à Ordem Internacional da Escultura. Contudo, suas figurações, rimas e poéticas obedecem mais a parâmetros neoclássicos que expressionistas.

Annatereza Fabris, professora e organizadora do magistral “Monumento a Ramos de Azevedo – Do Concurso ao Exílio” (- Campinas, SP : Mercado das Letras, São Paulo : Fapesp, 1997 – p. 42), destaca o correto posicionamento de Ettore Rigo sobre as intenções conceptivas desta obra de Emendabili, a partir da tríade: pensamento, força e equilíbrio, dividido e integrado num espetáculo de três atos.

No caso do Monumento a Ramos de Azevedo, o modelado das “Musas” se apoia sobre os ideais do Iluminismo, adotados por Azevedo, baseados no lirismo racional, no aperfeiçoamento e empenho pessoal.

Já o “Grupo dos Trabalhadores”, tem matriz inspirativa outra, michelangiana, contudo de cunho heróico, baseado no sacrifício pessoal despendido em prol de um ideal social e coletivo.

Por sua vez, o conjunto expressionista “O Progresso”, consistente no “Cavalo Alado”, no “Homem do Futuro” e na “Vitória”; se inspira na idealizada elevação dos povos pelo progresso social através do engenho, da visão de futuro, da ciência, da tecnologia, da ética, do trabalho, do dever-ser.

Assim, as “Musas” neoclássicas de Emendabili se aprumam segundo critérios de estilo, mas não de gênero. São modeladas de uma forma moderna, contudo próxima a Canova. Evocam as Antiguidades (as egípcias, picenas, etruscas, gregas e celtas, eram particularmente caras a Galileo Emendabili), visando contribuir para o entendimento do público, a dar-lhe ao conjunto escultórico cognição das artes incorporadas e coligadas às obras do homenageado, possibilitando uma retroprojeção do passado, a poder vislumbrar o futuro a partir daquele presente (1934).

Infelizmente, não se tem o nome da infinitamente bela mulher que posou para Galileo Emendabili. Corre lenda familiar que a exuberante mulher, causa de não infundados ciúmes da esposa do artista, Malvina, seria “francesa”, ou “polaca”, e que fora mui amiga de um banqueiro e também de um ex-presidente da República Velha, de gostos requintados, culto, muito elegante, e que tinha paixão por automóveis e por construir estradas...

O monumento foi terminado e erigido antes do tempo, tendo de esperar alguns meses envelopado, pronto, para ser inaugurado aos 25 de janeiro de 1934, aniversário de fundação da cidade de São Paulo.

Retornando ao modelado das “musas”, segundo a visão de Giulio Argan, para Canova: "... a forma não é a representação física da coisa, mas é a própria coisa sublimada, transposta do plano da experiência sensorial para o do pensamento. Por isso pode-se dizer que Canova realizou na arte a mesma passagem do sensualismo ao idealismo que Kant realizou na filosofia, ou na literatura, Goethe, e na música, Beethoven".

Assim, tanto as “Musas” de Emendabili, como a Vênus, de Canova (Vênus Itálica), não raro, são objeto de desejo carnal. Houve quem beijasse a Venere Italica, assim como não incomum apanhar alguém abraçando as “Musas”, ou mesmo “aninhado” em seus corpos sensuais. O toque das “Musas” constitui espécie de tentada possessão, e parece ser igualmente necessário, para a completa apreciação, em virtude da pátina esmerada, que acentuou a sensualidade e a tactilidade implícita, quando da contemplação da obra.

De fato, o acabamento pessoal e esmerado das esculturas de Emendabili, em seu polimento fino, buscado obsessivamente em seus detalhes anatômicos mais diminutos, inclusive unhas, cabelos, olhos, sobrancelhas, nariz, orelhas e boca, era parte integral do efeito que ele procurava obter.

Nada mais aproxima a obra de Galileo Emendabili, um trabalhador incansável, que esta construção de Canova sobre si: "Não há nada mais precioso para mim do que o tempo e todos sabem como o economizo; não obstante, quando estou terminando um trabalho e quando ele já foi terminado, gostaria de retomá-lo sempre, também depois, se me fosse possível, pois a fama não está nas muitas coisas, mas nas poucas bem feitas; procuro encontrar na minha matéria um não-sei-quê de espiritual que lhe sirva de alma, a pura imitação da forma torna-se para mim morta; é necessário que eu a ajude com o intelecto e torne nobres essas formas com a inspiração, pois gostaria simplesmente que tivessem uma aparência de vida". Neste sentido, as “Musas”, dos olhares perdidos de seus contempladores, se sente que estimulam muitas fantasias em quem as observa...

Emendabili tinha em alta conta os mestres antigos, especialmente Fídias. Contudo, o seu tradicional modelar (que não foi empregado no Monumento a Ramos de Azevedo), adicionando pouco a pouco pequenos bocados de argila dedilhados e empurrados pelo polegar direito contra a massa da escultura em formação, conferia especial textura e expressividade à obra. Mais que isto, seu amplo conhecimento da iconografia clássica e mitológica possibilitava que retirasse da argila, gesso, cerâmicas e mármores, os elementos necessários para a criação de uma peça, caso das “Musas”, que remetesse à Antiguidade, porém revestida de novos modelados, em paralelismo a modernos significados.

Os Construtores:

A delicadeza e sensualidade contida e sublimada nas “Musas” se antepõem à força explosiva da virilidade do “Grupo dos Construtores”, a estes emprestando Emendabili posicionamento de movimento em poderoso arranque, toda a força à frente, verdadeiro empuxo heróico e monumental do Brasão “Non Ducor. Duco.” - Não sou conduzido. Conduzo -, emblema e lema maior de São Paulo.

A nudez potente e viril dos “Construtores”, modelados em portentosos corpos, retesados e definidos grupos e feixes musculares, revela o trabalhar em coesão coordenada, que independe de quem for para a execução de um trabalho acima das forças humanas.

Como escrito, no “Grupo dos Construtores” Emendabili encontra inspiração na escultura de Michelangelo.

O autor do Monumento a Ramos de Azevedo era um profundo conhecedor de Anatomia Humana e Animal, aprendida com Antonio Venturi na Real Academia de Belas Artes de Urbino e em estudos autodidáticos. Sabia como poucos traduzir isto no mármore, na cerâmica, na madeira e na argila. Por ser primordialmente um Iluminista, imbuído de ideais democráticos e republicanos, numa Itália monárquica e prestes a se fascistizar, extracurricularmente estudara aprofundadamente: Filosofia, Arqueologia, Mitologia, História Universal, Física, Química, Matemática e, sobretudo, Geometria. Para quem o conheceu pessoalmente, o poderio de sua mente, proporcional ao seu talento, não raro, assombrava.

Necessário antes entender que Michelangelo via o processo escultórico como remoção do supérfluo para expor a ideia - o concetto. As influências imediatas de sua obra remontam à escultura romana. Seu período influenciou-se pelas obras de Giovanni Pisano, Niccolò dell'Arca, Jacopo della Quercia, Donatello (em quem Emendabili muito se inspirou numa fase posterior) e Leonardo da Vinci. Contudo, não os imitou. Buscou sempre seu próprio traço e seu estilo na escultura. Conforme analisou Argan, Michelangelo pesquisou muito para obter em sua obra aquilo que denominava: - movimento puro.

E este movimento puro se encontra no “Grupo dos Construtores”. Os “Construtores” foram concebidos e representados nos momentos preparatórios do avanço, semelhante àquela figuração michelangiana que antecede ao combate com Golias. Suas expressões são tensas. A musculatura de todo grupo, enrijecida, delineada, tonal, prepara-se, em supremo esforço, para o arranque, a levar à frente e assim deslocar o pesadíssimo legado, espécie de inexorável herança, representado pelo brasão de São Paulo, em direção ao ‘Futuro’ sempre almejado. Os corpos apinhados colimam o esforço coordenado. Mãos crispadas nas argolas. Joelhos dobrados apoiados num anteparo, a dar empuxo. Pés fincados no chão. Dorso inclinado à frente, quase alinhado com as pernas num ângulo muito acentuado em relação ao piso. Pescoços retesados e cabeças inclinadas e voltadas para baixo, a conferir suprema força para a ação. Mas ainda ação não há. Esta está por vir, pela concentração da energia que antecipa o momento crucial de arrasto, de empuxo perene do pesadíssimo bloco que porta o brasão sedimentado no solo, fincado como raiz profunda.

O grupo representa símbolo não só do civismo republicano das gentes de São Paulo que, para Emendabili, sempre foi espécie de condição natural de ascensão gloriosa do Homem sobre si e seu destino; mas o agir de um povo por vontade própria, por meio do engenho, do saber, do trabalho, a criar e a fazer, que fora arquétipo típico do pensamento renascentista ao colocar o Homem, e suas ações, ao centro do Universo.

Há de se escrever que o “Grupo de Construtores” de Emendabili, no Monumento a Ramos de Azevedo, não encarna, no bronze, arquétipos ideais de alta filosofia. Representam maximamente o trabalho dos anônimos. Praticamente não se veem suas faces, que se voltam umas para as outras, inclinadas para baixo. Seus corpos se sobrepõem, somando forças, no esforço hercúleo pelo qual preparam e concretizam sempre perenes ações.

Para quem frontalmente vê a parte posterior do monumento, percebe intuitivamente que o posicionamento dos corpos tem formação piramidal. Na lateralidade, também se intui a formação proposital de um triângulo com hipotenusa voltada para cima, inserta e delineada imaginariamente ao longo dos dorsos do grupo figurado. Inevitável sentir paralelismos, mesmo que com outra roupagem estética no modelado, com a arte figurativa romana.

Revelam-se nos “Construtores”, os primeiros “segredos geométricos” de Galileo Emendabili na obra, e que ele inserirá, e maximamente, de forma hermética, no monumento posterior, o “32” – “Monumento Obelisco Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932” - no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Não ao acaso o “Grupo de Construtores”, situados na parte posterior da base, acompanha a orientação espacial do homenageado, colocado à frente, no sentido de oposição e complementaridade ao longo do eixo maior da base.

Ramos de Azevedo olha suas plantas, suas ideias, inspirado pelas “Musas” da “Arquitetura”, da “Escultura”, da “Engenharia”, da “Pintura”, dispostas nas duas laterais. Mas quem as concretiza, a partir do chão, piramidalmente, são os “Construtores": - os anônimos operários da construção civil, os artesãos, os braçais, aqueles que erguem as coisas belas, glorificados no bronze.

Emendabili, no grupo, quis eternizar o valor da força do trabalho, sem a qual qualquer concretização humana é impossível. Mas não o trabalho intelectual, conceptivo. E sim aquele subordinado, subserviente, resignado, anônimo, executivo, feito de sacrifícios, de renúncias, de esforço, de músculos e destreza, sem o qual nada existiria e nada se realizaria.

Não desejou Emendabili, no monumento, colocar este sinal, este valor, em frisos laterais, na forma de altos ou baixos relevos, em posicionamento meramente subsidiário, secundário, coadjuvante, menor. Para ele, este tipo de trabalho encerrava valor em si. Emendabili provinha de origem humilde. Fora operário e artesão entalhador - desde tenra idade - na fábrica de móveis de seu pai (que fora abandonado ao nascer, crescido e educado num orfanato), em paridade de ofício com os demais operários e artesãos, muitos deles surdos-mudos. Com estes e em especial com Augusto Clementi, entalhador, aprendeu menino a linguagem dos sinais (Libras). Assim, destacou o grupo, integrando-o ao conjunto, a dar-lhe paridade com o homenageado, por algo que sentia na alma, desde pequeno: - A honra, a imprescindibilidade, o imenso valor do trabalho corpóreo, braçal, manual, operário.

Há também proposital diatribe dialética, espacial e histórica, entre o “Grupo dos Construtores” e o homenageado Ramos de Azevedo, na base do monumento. É que predominava no Brasil engenheiros, arquitetos, artesãos e operários estrangeiros. Em São Paulo, desde a virada para o Século XX, até por volta de 1927, cerca de 70% do operariado qualificado em São Paulo, ou era italiano, ou oriundo. Acostumados estavam a seguirem diretrizes de industriais, empresários, empreiteiros, arquitetos e engenheiros estrangeiros.

Ramos de Azevedo rompeu e inverteu - por primeiro no Brasil - especialmente em São Paulo - esta tradição de dependência intelectual construtiva externa. Era um brasileiro, um paulista, agora, quem estava no comando. Era Ramos de Azevedo quem ditava as regras, inclusive de forma autoritária. Era ele quem dizia o que se deveria o não se deveria fazer nas obras. A todos. Era ele o reformador do ensino técnico. Era ele o mestre e professor. E isto foi importantíssimo, na época, para a construção também de uma unidade afirmativa da identidade paulista e nacional à frente dos destinos de São Paulo e do Brasil expressa na Arquitetura. Sem exageros, neste sentido, Ramos de Azevedo deve ser considerado o pai dos arquitetos e dos engenheiros brasileiros. O fato constituiu plena emancipação, técnica e intelectual, no cenário construtivo paulista, concretamente e, no plano nacional, ideologicamente. Daí, seu caráter histórico, remarcado por Emendabili no “Grupo dos Construtores”, antepostos posteriormente, como seguidores de Ramos de Azevedo, sempre à frente.

Na base do monumento, portanto, encerrou Emendabili simbologicamente parte de sua hermética tríade, desdobrada ali em 9 esculturas (4 na parte posterior; 4 musas nas laterais e o homenageado à frente). Assim: Trabalho; Inspiração; Concepção; Força; Equilíbrio; Pensamento; Pedra Bruta; Pedra Lavrada; Pedra Polida.

O numeral 9 (e também os numerais primos 3; 5; 7) permeia a obra emendabiliana, e estará mais que presente, e maximamente, no “Monumento Obelisco Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932”, o “32”.

A Colunata:

Vê-se que o monumento divide-se em três partes distintas e integradas, ao longo de seu eixo vertical.

Superadas as singularidades simbólicas esculpidas na base, o monumento sofre um abrupto arranque para cima, verticalizando-se, induzindo o movimento do olhar para o alto de quem o contempla, por meio das 8 colunas dóricas, 4 de cada lado, a partir da base do monumento, dispostas e fincadas ao longo do sentido do eixo maior.

O número 4 representa os portais essenciais, traduzidos em elementos: Fogo – Ar - Terra – Água; e o numeral 8, representa o Infinito. Ambos os numerais também fazem parte do repertório simbológico e numérico de Emendabili.

Conjugadas, a dupla fileira de colunas representa o Infinito: Espacial e Temporal.

A arquitrave que as 8 colunas dóricas sustentam, no topo, por sua vez, é o elemento apoteótico arquitetônico que vem a completar novamente o numeral 9. Assim, tem-se a constante numeral da obra emendabiliana, a sua assinatura matemática monumental. 9 elementos esculturais na base, que irrompe e se eleva por meio de 9 elementos arquitetônicos graníticos, até atingirem a Síntese Escultórica, no cume, modelada em conjunto de 3 peças: Cavalo Alado – Homem do Futuro – Vitória, formando desdobradas tríades.

Multiplicado o numeral 9 por si, perfaz o numeral 81, que tem significado hermético, espécie de fecho referencial, simbológico e mitológico. A raiz quadrada deste numeral resulta em 9 e a cúbica em 3. As três partes monumentais se exponenciam: Base; Elevação e Apogeu, tudo em equilíbrio justo e perfeito entre pares de colunas, quando vistas perfiladas e alinhadas no longo eixo da base, no sentido anteroposterior.
Esta justeza e perfeição entre colunas em granito Itaquera representa ulterior, sutil, mas fortíssimo, indestrutível, eterno liame havido entre Galileo Emendabili e Francisco de Paula Ramos de Azevedo. Ambos eram irmãos que se reconhecem. Para que se entenda esta trajetória fraterna de ambos – o autor do monumento e o homenageado - tão importante quanto saber que Ramos de Azevedo era membro da Loja Independência de Campinas, que ergueu colunas sob a égide republicana, portanto, em franca oposição à Monarquia do Século XIX; necessário também saber que Galileo Emendabili era um republicano numa Itália monárquica e pré-fascista.

Emendabili esculpiu lá o busto de Mazzini erigindo, a seguir, em 1921, o memorial a Giuseppe Meloni, jovem republicano assassinado por guardas reais fascistas à saída do Teatro das Musas, fato este que causou comoção política e social no início da década de 1920, em Ancona. Teve, por isto, de emigrar meses depois da ascensão do Fascismo, em 1923, pois que passou na ser perseguido como intelectual de oposição. Presume-se, pois, que ambos partilhavam, desde jovens, de ideais comuns. Queriam um regime republicano e democrático em seus respectivos países, bem como e, sobretudo, se encontravam irmanados nos mesmos graus filosóficos.

Indícios disto se apuram até das referências destacadas de escritos, no citado livro organizado por Annatereza Fabris (p. 22), a respeito de Ramos de Azevedo: “E tudo ele fez... tudo foi por ele aperfeiçoado, limado, polido,...”.

Assim, as pareadas colunas e todas estas relações numéricas não são casuais no monumento em tela e se repetirão no “32”, bem como em várias outras obras de Emendabili.

Poderia o autor escolher, até diante da crítica despropositada ao tempo do concurso, de no projeto: “... faltar estabilidade...” (in obra citada de Annatereza Fabris – p. 36) à obra; e isto num monumento que foi: construído, desmontado e remontado em outro sítio, sem que se observasse problema estrutural algum; colocar-se no entremeio vertical um bloco monumental de granito que conectasse a base com o seu ápice. De certo, isto tornaria o monumento pesado, maciço, antiestético, pobre de expressão e privo de sentido, uma base com pedestal para se colocar um boneco encima. 

Paralelizando os dizeres de Pollilo à época do concurso, isto faria com que o monumento parecesse mais: “... um desses aquecedores de querosene que a Alemanha está exportando agora...” (in obra citada, de Fabris, p. 25), “... como tantos monstrengos monumentais que se veem nas praças de São Paulo, inclusive de artistas consagrados”. De todo apropriada, pois, a escolha de Emendabili, quanto à colunata.

Para o estilo de capitel das colunas, o artista selecionou o Dórico, por representar este estilo o mais puro, elegante, simples e sintético dentre os capitéis gregos da Antiguidade Clássica. Quis ele, com isto, imprimir linearidade e leveza clássica à obra azevediana, além daquela referida, simbológica, hermética, de comunhão filosófica. Isto por um lado. Por outro, o pareamento simétrico das colunas entre si empresta vazão visual ao contemplador dentre estes elementos arquitetônicos. Isto engrandece visualmente o conjunto em sua verticalidade e o integra suavemente ao entorno, conferindo alívio estético a quem a vê enquanto segue o olhar para o alto acompanhando a linearidade das colunas, até encontrar a soberba mole da arquitrave.

As colunas, assim concebidas e dispostas, são elementos conectivos discretos, harmônicos, clássicos, entre o conjunto simbólico e escultórico da base, eminentemente humano, e o conjunto escultórico superior, de todo idealizado, dando-lhes sentido, integração, elegância e equilíbrio ao todo.

A Arquitrave:

“A reprodução fotográfica da segunda maquete do monumento já apresenta as modificações definitivas: são oito colunas, sendo que todas se elevam da mesma plataforma, sem diferenças de nível. Quanto às lápides laterais superiores, estas formam dois retângulos, cada um contido na própria estrutura lateral do bloco que sustenta o Progresso. Ao redor deste bloco, ao encontro das lápides, foi acrescentada uma “estrutura horizontal divisória”, uma moldura, se assim posso mencionar ”.

Silvana Brunelli (in obra citada, FABRIS, Annatereza, p. 41).

Como se percebe dos escritos de Brunelli, a Arquitrave, de desenho arquitetônico, ao alto do monumento, sedimentada e mantida sobre as 8 colunas dóricas, é obra de engenharia de complexa resolução.

Se por um lado a Arquitrave confere estabilidade, dado a massa e o peso, por travamento, das colunas sob si, por outro, suporta a não indiferente mole escultórica em bronze, representada pelo conjunto “O Progresso”, que sobre si se apoia.

As molduras aplicadas em suas lateralidades fazem referências inscritas a Ramos de Azevedo. A mais importante destas é o epíteto grafado em Latim: Vida breve. Arte longa.

A Arquitrave, por sua vez, se desenvolve em plano inclinado, assumindo aspecto trapezoidal quando vista por sua lateralidade, encerrando, ao alto, mais outra tríade emendabiliana, a granítica do monumento, composta pela: Base - Colunata – Arquitrave.

O Progresso:

O conjunto escultórico que encerra maior simbolismo na obra, colocado no topo do monumento, é mais uma tríade emendabiliana, desta feita brônzea, denominado pelo autor: “O Progresso”, composto por três distintos elementos integrados: O “Cavalo Alado”; a “Vitória” (Deusa Nike); o “Homem do Futuro”.

O plano superior horizontal inclinado da arquitrave não somente suporta o conjunto escultórico da apoteose monumental. Antes isso, dota-o de movimento. A área do plano inclinado da arquitrave, ao encerrar aquele espaço, imediatamente transmite a quem vê o conjunto, a sugestão de tratar-se de um aclive que termina abruptamente, espécie de pista de arranque, de empuxo, de decolagem.

O “Cavalo Alado”, contido em seus movimentos, com asas ainda fechadas sobre si mesmas, é montado virilmente pelo “Homem do Futuro”, que em suas mãos detém a “Vitória”.

Prestes a saltar, a se lançar no vazio, a partir do final do plano ascendente da arquitrave. Alternativa outra não há que alçar seu voo.

Na verdade, com esta concepção, Emendabili celebra São Paulo e sua gente, prevendo o destino grandioso que a firmou como uma das capitais mundiais no concerto restrito das Cosmópolis ao longo do Século XX, a partir do operado por Ramos de Azevedo, historicamente o seu maior tradutor arquitetônico.

Mais uma vez, o modelado do conjunto apoteótico difere daquele presente na base do monumento.

A partir da figuração de Ramos de Azevedo, prevalentemente acadêmica, passa-se ao modelado das Musas, neoclássico, canoviano, até deparar-se com o conjunto renascentista do impressionante grupo dos “Trabalhadores”, a impulsionarem tudo à frente.

O olhar ao alto transmuda-se ao deparar-se com a apologética dimensão escultórica expressionista, moderna, do conjunto “O Progresso”.

A análise do conjunto escultórico, em seu todo, presente no monumento revela, ao mesmo tempo: - o pleno domínio escultórico de Emendabili por diferentes formatos de expressão da Escultura ao longo das eras, na obra executada com primor, maestria, e beleza, a saber:

- a linguagem arquitetônica acadêmica, pela escultura, do homenageado, presente na base, cujas obras, por ele realizadas, simbolizadas estão pelas Musas, essencialmente neoclássicas;

- a perfectibilidade renascentista, pelo modelado do grupo dos ”Trabalhadores” (“Construtores”), em movimento ao mesmo tempo contido e prestes a evoluir, incapaz de ser obstado, propulsionando o avanço pela força do trabalho coordenado e sincrônico;

- a projeção para o futuro da megalópole e suas gentes, por meio de um modelado expressivo, vigoroso, viril, ágil, conquistador, ideal da apoteose representada pelo “O Progresso”;

- a integração do versátil conjunto escultórico com a arquitetura da colunata e da arquitrave, emprestando verticalidade, a conferir pureza de linhas, transparência e leveza ao conjunto monumental.

A Execução da obra:

"Antes da inauguração, o filho de Ramos de Azevedo visitou o monumento, que ainda estava coberto por tapumes, ficou indignado e quis saber por que Galileo representara seu pai com “beiçola de negro”. Galileo respondeu a ele dizendo que havia reproduzido seu pai como ele era, pois o conheceu pessoalmente. Ramos de Azevedo possuía ascendência negra por parte de mãe e viveu toda sua vida sem que isso atrapalhasse sua ascendência na sociedade extremamente racista da época (MARTINS, 2006)".

In Mapeamento das formas de intemperismo do Monumento a Ramos de Azevedo. Danielle Grossi et Eliane Aparecida Del Lama.

Galileo Emendabili amava este seu monumento mais que qualquer outro que tenha concebido e executado.

Para quem o conheceu, as razões essencialmente são:

Por primeiro, tinha Emendabili 35 anos de idade quando começou a executar a obra, ano seguinte ao concurso. Era jovem e com a obra se afirmava em definitivo no cenário das Artes, em São Paulo, e no exterior.

 

As fotografias do projeto correram o mundo pelos jornais, em especial a Europa e a Itália. Intimamente guardava em si essa necessidade premente de resposta ao regime que o fez emigrar de sua terra natal, a fazer com que este visse que, como ele agora, tantos primaram em terra estrangeira, apesar de tudo. E talvez mais e melhor do que aqueles que, artistas ou não, mas fiéis ao regime, ou por conveniência e oportunidade, ou por sincera adesão, ocuparam seus lugares com menos talento e força de trabalho, na Itália.

Em segundo lugar, prosaica, mas não menos necessária na vida de um artista, Emendabili obtivera independência econômica com a obra. A partir de então, como escultor, passara a ser conhecido como o mais caro de São Paulo, fato este reportado pelo encarte de “Veja São Paulo”, até o final de sua vida.

Por terceiro, a fase de execução exigiu dele o máximo de si. O edital exigia inauguração para 25 de janeiro de 1934. Tinha ele pouco tempo para esculpir a obra, colocá-la no bronze, usinar e patinar as peças, mandar esculpir sob seu desenho a estrutura granítica do monumento, supervisionando tudo desde as fundações. Era ele um obsecado pela perfeição. Não raro, não contente com uma execução, mandava o responsável refazer a peça, fosse de granito ou bronze, pois que não a aceitava enquanto a não atendidas às suas altas exigências executivas.

Emendabili tomou então uma decisão drástica, que exigiria dele até a última das forças e todo o seu incomensurável talento e domínio técnico para a Escultura. Modelar diretamente no gesso. Para quem não conhece a fundo a Escultura, a modelagem em argila, por primeiro, se mostra a mais segura para o artista. Pode ele, a qualquer tempo, desde que mantenha a argila úmida refazer, no todo ou em parte, a peça em fase de execução, ao seu exclusivo critério. No gesso, e no mármore, não. Em caso de erro, perde-se a inteira peça, que há de ser descartada. Não há espaço para enganos, acidentes, ou erros.  A modelagem se faz em uma só mão, enquanto o gesso vai “tomando presa”, ou seja, endurecendo. Há de ser o artista, portanto, preciso e rápido. Tem de ter na mente, e transmitir para as mãos e ferramentas, de imediato, toda a ideia a ser transposta para o suporte material, no caso, o gesso.

O Exílio:

"Na ocasião o sr. Emendabili forneceu à IEMSA um álbum de fotografias relativo à montagem do monumento, que foi de muita valia nas obras de remoção, principalmente em relação às fundações, patolas, subdivisão das peças do cavalo e do homem".

(HANITZSCH, 1994: s.p.).

"Por iniciativa de José Carlos de Figueiredo Ferraz, então prefeito de São Paulo, ex-aluno e também professor da Escola Politécnica, em agosto de 1972, a prefeitura de São Paulo abriu concorrência para a recuperação e transporte do monumento até a Cidade Universitária, próximo à Escola Politécnica, onde se encontra até hoje. Tal local foi escolhido numa tentativa de recuperar, de certa forma, o seu significado simbólico original.

A empresa vencedora foi a Sergus Engenharia e Comércio Ltda (FABRIS, 1997). A remontagem exigiu a reconvocação do arquiteto e do escultor da época. O serviço de cantaria passou por muitas dificuldades por não encontrar mão de obra especializada para sua realização, sendo picotadas as peças de granito, que já haviam sido danificadas pelo tempo.

Emendabili, que falece em 14 de janeiro de 1974, antes de ver o resultado final da remontagem, sugere o uso da píccola, um martelo dentado, que dá o aspecto granulado à rocha.

Em 17 de dezembro de 1975 o monumento é reinaugurado e a praça que o recebe é batizada com o nome do arquiteto (MONUMENTO..., 1975).

A demora na montagem do monumento na Cidade Universitária foi devido ao receio de haver problemas no momento da justaposição das peças.

Em 1980 o monumento passou por novas modificações as quais não foram especificadas e descritas (COMISSÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL, 1997).

Em 12 de fevereiro de 1988, o então prefeito Jânio Quadros solicita a José Goldenberg, reitor da Universidade de São Paulo, a devolução do monumento, alegando que este se encontra em local que não afina com a imponência da escultura, cabendo à prefeitura encontrar local aprazível à grandiosidade da obra.

A ideia da prefeitura era a de deslocar o monumento 14 Bis em 500 metros e colocar o Monumento a Ramos de Azevedo na Praça Campo de Bagatelle, local onde ele se dirigia para contemplar a expansão urbana de São Paulo.

O Prof. Nestor Goulart dos Reis Filho, a Fundusp e a Prefeitura da Cidade Universitária concordaram com a devolução, porém, esta não se concretizou, com o monumento permanecendo na Cidade Universitária".

In Mapeamento das formas de intemperismo do Monumento a Ramos de Azevedo. Danielle Grossi et Eliane Aparecida Del Lama.

 

Desde meados dos anos 1950 se cogitava na remoção do monumento de seu sítio original, a melhorar o crescente fluxo de tráfego no atualmente chamado “Eixo Norte-Sul”, sobretudo no trajeto da Avenida Tiradentes.

Contudo, além dos entraves administrativos e burocráticos para executar a remoção, havia melindre. O monumento marcara por sua presença imponente a memória da cidade, de sua população, apesar do intenso fluxo de veículos, já à época. Isto porque e, sobretudo, se integrava com o majestoso edifício do antigo Liceu de Artes e Ofícios, hoje Pinacoteca do Estado de São Paulo, idealizado por Ramos de Azevedo, no qual o homenageado passara grande parte de sua vida e desenvolvera importante papel de educador de órfãos e menos favorecidos, que ingressavam no Liceu como aprendizes.

Os anos 1960 foram marcados no Brasil pelo advento do Regime Militar. O viés ideológico nacional-desenvolvimentista logo se fez sentir. Ufanismos exaltados de uma brasilidade mal definida reprimiam regionalismos. A questão da memória artística, arquitetônica e urbanística, destacadamente na cidade de São Paulo, fora acantonada. Retrata bem este clima o verso de Caetano Veloso, em “Sampa”, quando ressalta que em São Paulo os interesses econômicos e seu poder derivado sobrepujam, erguendo e destruindo “coisas belas”.

O governo militar, que havia se comprometido restituir o poder democrático aos civis por eleições diretas a partir de 1965, não somente faltou com o compromisso feito às lideranças políticas civis, que o apoiaram quando da deposição forçada do presidente João Goulart, bem como passou a se basear por sobre este componente civil empresarial, agrário, financeiro e político, em apoio ao regime.

Títeres civis do regime, sobretudo a partir de 1969, presentes no cenário político, destacadamente paulistano, se incumbiram de levar a cabo, propositadamente ou não, a desconstrução da figura de Ramos de Azevedo no cenário de São Paulo.

O primeiro movimento se deu quando da determinação obstinada pela retirada do monumento de seu sítio original na gestão de Paulo Salim Maluf quando prefeito “biônico” (nomeado pelos militares) da capital de São Paulo. Emendabili, nesta época, pelos jornais, destacadamente pelo “O Estado de São Paulo”, e pelo rádio, por meio do programa de Vicente Leporace, “O Trabuco”, na Rádio Bandeirantes, travou com o então prefeito Maluf verdadeira batalha pela preservação do monumento, sem êxito.

Em retorção imediata, Paulo Salim Maluf determinara o término do contrato administrativo de comodato vitalício conferido pelo passado prefeito Prestes Maia, quando do período democrático, a Galileo Emendabili, incidente numa área no Parque Ibirapuera destinada a sediar seu atelier.
Os episódios do aguerrido combate entre um dos máximos representantes civis da ditadura e o artista repercutiam na mídia e ganhavam, dia a dia, contornos que extrapolavam a questão do monumento para desembocarem num símbolo de resistência à ditadura, assim elegido pelo jornalismo paulistano. Isto custou a Emendabili uma sucessão de enfartos. Sua saúde, a partir daí, rapidamente deteriorou.

Na sucessão de prefeitos do período, ascendeu um técnico, o engenheiro Figueiredo Ferraz. Tinha ele ideias avançadas para dinamizar e reurbanizar a Avenida Paulista, aproveitando as obras do Metrô para passar sob o solo todo o cabeamento elétrico e tubulação, a “limpar” visualmente a avenida, preparando-a para receber o que já se esboçava como local para acolher o centro financeiro latino-americano, em substituição ao que fora, neste sentido, a Avenida São Luís.

Desta época um assessor de imprensa do governo Ferraz, que futuramente se destacaria no cenário jornalístico nacional: - Boris Casoy.  Como assessor e seguindo o drama vivido por Emendabili, Casoy, às ocultas, trancava em sua gaveta o processo administrativo de desapossamento do artista de seu atelier, não deixando os autos tramitarem, contando com a lerdeza e a desorganização da burocracia que sempre maculou a administração pública.

Neste ínterim, o monumento vinha sendo desmontado. E, mesmo gravemente doente era Emendabili quem orientava os engenheiros e operários sobre onde começar, prosseguir, organizar as peças de granito Itaquera, cortar o bronze e catalogá-lo, fatos estes testemunhados por Hanitzsch, o engenheiro da empresa responsável pelo desmonte, a IEMSA, tal como reportado por Silvana Brunelli em sua tese de doutorado pela USP.

Os bronzes e os granitos passaram meses ao relento, dispersos em pátios, até que a pressão popular e a campanha empreendida pelas rádios e pelos jornais de parte de Emendabili: apoiado na televisão (TV Bandeirantes) pelo jornalista Maurício Loureiro Gama (que inaugurara em 1950 o telejornal na América Latina pela extinta TV Tupi, sendo ele o maior de seus biógrafos); e no rádio, por Vicente Leporace e Salomão Ésper (Rádio Bandeirantes), além de um grupo forte de jornalistas da mídia escrita; fez com que o monumento começasse a ser remontado na praça eleita antes por Ferraz, situada em frente ao Instituto de Pesquisas Tecnológicas, próxima da Escola Politécnica, tão cara a Ramos de Azevedo, no campus da USP.

Incumbiu-se disto também a Faculdade de Belas Artes, de São Paulo, então sediada no Liceu de Artes e Ofícios (hoje Pinacoteca do Estado de São Paulo), sempre sobre orientação de Galileo Emendabili que, mesmo alquebrado, todos os dias comparecia ao canteiro de obras.

Outro momento da desconstrução de Ramos de Azevedo, em São Paulo, se deu nos anos sessenta e teve seu ápice após a destituição de Figueiredo Ferraz como prefeito, de parte das lideranças civis do governo militar. Ferraz ousou dizer, dado o caos desordenado de expansão urbana de São Paulo naqueles anos, alvo certo de migração interna, brasileira, sobretudo nordestina, em massa, empregada na construção civil financiada pelo governo federal, que: “São Paulo deve parar”. Referia-se ele ao repensar a cidade, buscar meios de planejá-la, antes sobreviesse o caos urbano que ora se vê e se sente na capital bandeirante. Contudo, o ufanismo militante daqueles anos militares, expresso no bordão: “Brasil. Ame-o ou deixe-o”; ou: “São Paulo não pode parar”; não o perdoou, e destituído foi, numa canetada, no giro de poucas horas.

Àquela altura, a desfiguração da Avenida Paulista caminhava a passos largos. As antigas mansões e mansardas projetadas e executadas, dentre outros arquitetos de renome e alçada, também por Ramos de Azevedo, naquela avenida de nítido cunho parisiense, eram impiedosamente postas abaixo, a dar rapidamente espaço a edifícios altos em lugar de palacetes assobradados, nos dizeres de Adoniran, tornando-a um arremedo caricaturado de ambicionada espécie de 5ª Avenida nova-iorquina.

Chegava o ano de 1974, com o monumento em fase avançada de remontagem. Emendabili estava exausto, sem mais forças. Sucessivas doenças o assolavam. Um fio, invisível, tenaz, mantinha-o miraculosamente vivo, recusando-se a se romper enquanto não visse o Ramos de Azevedo refeito.
Ironicamente, entre 1970 e 1974, irrompera nele uma fúria criativa que expressava não mais na argila, na cerâmica, no mármore, por incapacidade física quase absoluta, mas no papel. Inúmeros seus desenhos e pastéis desta época.

Nos primeiros dias de janeiro sua saúde encontrava óbice insuperável e aos 14 do mês, dentro do centro cirúrgico do Hospital Santa Rita, na Vila Mariana, após 51 anos de ininterrupta atividade artística em São Paulo, encantou.

Dois dias após o falecimento de Emendabili, o então prefeito Miguel Colasuonno, homem ligado a Paulo Salim Maluf mesmo após a restauração democrática, sem nenhum prévio aviso à família, mandara que operários sem nenhuma qualificação arrombassem o atelier, um enorme galpão de madeira estabilizado por tirantes de aço, no Parque Ibirapuera. De dentro, arremessaram sobre caçambas abertas de caminhões da prefeitura, sem cuidado algum, maquetes, estudos, projetos, bustos e esculturas várias, em gesso e outros materiais.

Perdeu-se assim muito do acervo. Poucas peças escaparam incólumes. Outras foram restauradas, a duras penas, pela filha do artista, Fiammetta Emendabili, nos anos vindouros. Mas tantas outras foram irremediavelmente perdidas para sempre.

Assim, a arquitetura de Ramos de Azevedo e a escultura de Galileo Emendabili, juntas, ao final, abatidas ao solo eram pelos títeres da amarga ditadura, encontrando destino comum...